6 de fevereiro de 2010

Anna Karenina - Tolstoi



O romance começa com a situação de infidelidade de Oblonski (irmão de Anna Karenina) e de como Dária reage. Aqui está um bom prenúncio.

Aqui achei interessante a reflexão que o autor nos proporciona ao nível dos diferentes papéis de género, digamos, na sociedade em que se inseria. Era uma sociedade conservadora de facto, com o seu quê de moderno, mas afinal de contas é na mesma uma sociedade patriarcal. Dária, mulher traída, demonstra muito bem com alguns dos seus pensamentos a posição socialmente subordinada da mulher, os papéis parentais que devem ser assumidos, a preocupação com as relações familiares. Demonstra muito daquilo que ainda hoje ocorre.

Achei bastante interessante como numa sociedade tão diferente e distante haja tantas semelhanças com o actual, com o presente. Tolstoi remete-nos para a sociedade russa do séc. XIX é certo, mas remete-nos também para a nossa condição e para aquilo que nós vivemos no dia-a-dia. Acho isso louvável. Acho fantástico que por vezes me consiga identificar com uma situação ou personagem de uma sociedade russa do século XIX. Essa é uma das razões, creio, de Tolstoi ser intemporal e universal.

Esta parte inicial remete-nos para algo que adorei: a descrição do sentimento.
Não é incrível o modo como Tolstoi consegue descrever a alegria, felicidade, a tristeza?

Outra coisa que é fantástica nesta primeira parte são as personagens que vão desfilando. Temos já apresentadas diversas personagens e cada uma é mais interessante do que a outra. Temos Oblonski, bom mas infiel; temos a sua frágil mulher Dária; Lévin, Anna, Kiti, Vronski...

Outro aspecto maravilhoso na escrita do autor é o modo como ele descreve as situações e o modo como nos faz sentir realmente os sentimentos (peço desculpa pela redundância) dessas personagens nessas situações. Quem não sentiu o que o Lévin sente pelo facto da Kiti ser como o sol para ele? E o Vronski... não parece que nos encontrávamos dentro do cérebro dele quando conheceu Anna e sentiu de imediato toda a atracção por ela? Eu consegui sentir essa atracção pois Tolstoi colocou-me dentro da cabeça da personagem e sem dúvida que é um mestre ao conseguir fazê-lo.

Voltando à questão da sociedade...
Em termos políticos houve uma constante referência à tendência ora conservadora, ora à tendência liberal. É um tema que me parece dominante e sem dúvida que irá prevalecer nas restantes partes da obra com discussões em terno dos camponeses, trabalhadores e dos capitalistas e das suas mais-valias. Sem dúvida que a revolução e o comunismo são dois conceitos-chave pelo que foi dado a entender destas primeiras páginas.

Isto remete-nos para uma dicotomia que a mim me pareceu óbvia: campo/cidade.
A personificar o campo surge Lévin... e é ele que aproxima estes dois mundos separados. Tal como existe o campo e a cidade, também Moscovo e Petersburgo surgem como opostos e como "mundos diferentes".


Toda a diversidade, todo o encanto, toda a beleza da vida se compõe de luz e de sombra. (P. 51)


Esta bela frase remete-nos para esta questão dos opostos. Tal como a luz e a sombra, a cidade e o campo... existem muitas outras oposições, a felicidade e a tristeza, o amor e o ódio...

É como diz Tolstoi: tudo "se compõe de luz e de sombra".

Nesta primeira parte, sem dúvida que também é realçado Lévin. Lévin surge com o intuito de se dirigir a Kiti para a pedir em casamento. É demonstrado o seu amor, e a pureza do seu amor. É um amor tão puro e no entanto Kiti vê-se confusa devido a Vronski, sedutor e fonte de atracção. Há o devaneio, a paixão e o amor. Há o constrangimento social para a escolha do "melhor partido"... Há todo um conjunto de coisinhas... e há Anna Karénina. Anna Karénina surge desde início para uma reconciliação de seu irmão Oblonski com sua mulher Dária.
Mas será que também surge como o motivo de separação definitiva de Kiti e Vronski? E o que será de Kiti? E de Lévin? E o que será de Anna Karénina?

Anna Karénina... como referiu Kiti em relação a ela "há qualquer coisa de estranho, demoníaco e encantador..." (P. 92).

Mais uma vez penso nos opostos... penso na união e na separação, penso no anjo e no demónio, penso na luz e na sombra.

A segunda parte começa com a “doença” da Kiti. Começamos portanto com um desgosto de “amor”. Sim amor, pois acredito que não era esse o sentimento que Kiti nutria por Vronski.
Aliado a este desgosto surge também uma certa quebra na “harmonia” familiar da irmã de Kiti (Dolli) e do irmão de Anna (Oblonski).
Tudo isto acontece quando Anna faz a viagem de partida. Tudo começa a esmorecer. E também Kiti parte para uma viagem ao estrangeiro.
Quando Anna volta ao seu meio... ela vê-se “entre mundos” sociais. Ela não encara a sociedade da mesma forma e é acompanhada por uma ligação constante a Vronski, é acompanhada por uma “sombra”. Mas ela estava apaixonada, e ela sentia isso...
Ela própria sentia que ao vê-lo a alegria se reflectia nos seus olhos e lhe franzia os lábios num sorriso, e não conseguia sufocar a expressão dessa alegria. P. 137
Pois a sociedade em questão é uma sociedade onde os rumores e as críticas são sempre eficazes e rápidos. É um mundo do “mal dizer”. Afinal de contas... todo o mundo é e foi sempre assim, certo?

Achei bastante interessante a diferença de como reage a personagem feminina e a masculina. São reacções que demonstram precisamente a representação que existe e existiu em relação à mulher e ao homem. Anna tenta rejeitar e esconder, pois ela seria mal vista perante todos numa situação assim. Isto é, a mulher surge sempre moralmente condenada. Já Vronski surge aqui com um certo brilho e audácia:
Ele [Vronski] sabia muito bem que aos olhos de Betsi e de todas as pessoas da sociedade não corria o risco de ser ridículo. Sabia muito bem que aos olhos daquelas pessoas o papel do amante infeliz de uma rapariga e em geral de qualquer mulher livre podia ser ridículo; mas o papel de um homem que se afeiçoava a uma mulher casada e dedicava a sua vida a atraí-la a todo o custo para o adultério, esse papel tinha qualquer coisa de belo, de grandioso e nunca podia ser ridículo... P. 138
As situações de adultério parecem ser imensas e o facto dos casamentos seguirem muitas vezes o motivo da conveniência e não o da “paixão” é apenas uma ajuda para que mais tarde o casamento acabe por não resultar.

Em relação ao amor devo citar aqui umas palavras:
Para conhecer o amor é preciso cometer erros e depois corrigir-se P. 147
Ao nível de personagens devo referir que tenho uma aversão muito grande a Aleksi, marido de Anna. Ele rejeita o ciúme mas depara-se com a situação de Vronski e de Anna como sendo algo ilógico e incoerente. Ele fica inquieto e preocupado. No entanto, continua a desviar toda a importância para o seu trabalho e rejeita os sentimentos de Anna. A aversão que tenho em relação a esta personagem é devido a essa mesma rejeição e indiferença em relação ao que acontece no interior de Anna, sua mulher. É uma personagem fria que rejeita o seu papel emocional e dá mais importância ao seu papel enquanto “chefe da família”. Isto evidencia, sem dúvida, a questão do patriarcado que já referi anteriormente.
Ele disse mesmo: não tenho o direito de penetrar em todos os pormenores dos teus sentimentos, e em geral considero isso inútil e até prejudicial (...) Ao remexer nas nossas almas, muitas vezes desenterramos coisas que lá deviam permanecer imperceptíveis. P. 156

Eventualmente Anna e Vronski acabariam por ter uma relação e assim começaria a traição (para mim, essa traição já teria começado há muito). Quando isso acontece surge uma fantástica descrição do autor em relação a Vronski e Anna:
Sentia aquilo que deve sentir um assassino ao ver o corpo a que tirou a vida. Esse corpo a que ele tirara a vida era o amor de ambos, o primeiro período do seu amor. (...) A vergonha da sua nudez espiritual oprimia-a a ela e comunicava-se a ele. Mas, apesar de todo o horror do assassino diante do corpo assassinado, era preciso esquartejar esse corpo, escondê-lo, fazer uso daquilo que o assassino ganhara com o crime... P. 159

Lévin é uma das personagens que mais gosto. Isto faz-me lembrar a descrição que é feita da primavera. A chegada da primavera é uma das outras descrições maravilhosas. Bem como também a descrição da égua Frou-Frou.
Lévin afirmou algo que achei interessante pois remete-nos para a razão pela qual muitas vezes não alcançamos a felicidade:
Alegro [-me] com aquilo que tenho, e não me aflijo com o que não tenho. P. 171
Isto é dito a Oblonski, quando este se dirige ao campo para visitar Lévin e para tratar da venda de um bosque. Achei interessante a perspectiva de Lévin em relação à nobreza e à inocência destes no que toca a assuntos de terrenos e de outros assuntos relativos ao campo.
É ainda notória a revolta de Lévin para com o facto da nobreza estar a “falir” para os mais fracos devido a essa mesma inocência.

As reacções à relação de Vronski e Anna são diversas, mas parecem todas ir no mesmo sentido. Tal como pensava o irmão mais velho de Vronski: Não lhe importava que amor fosse aquele, grande ou pequeno, apaixonado ou desapaixonado, depravado ou não (...), mas sabia que esse amor desagradava àqueles a quem era preciso agradar e, portanto, não aprovava o comportamento do irmão. P. 184
Aqui se destaca novamente a questão das “aparências” e do julgamento da sociedade sobre esses assuntos “pessoais”, que se tornam então sociais.
Sentia como era angustiante a situação de ambos, como era difícil, expostos como viviam aos olhos de toda a sociedade, ocultar o seu amor, mentir e enganar... P. 193
E quando se sabe da gravidez de Anna esta questão da mentira e das aparências é novamente colocada e é então ponderada uma fuga dessa mesma sociedade.
Numa fase final da parte retomamos a Kiti e à sua nova vida “espiritual” no estrangeiro. Esta entretanto fica curada desse “desgosto” e volta de novo à Rússia.
Para terminar, deixo aqui uma citação que também achei interessante:
Há tempos em que se pode vender um mês inteiro por cinquenta cêntimos, e outros em que não se cede meia hora por dinheiro nenhum. P. 242

A terceira parte é essencialmente a oposição campo/cidade e também surge muito evidenciada a oposição nobreza/classe trabalhadora.

Logo de início somos confrontados com Lévin no seu mundo. Lévin encontra-se no campo e nesse mundo ele junta-se aos trabalhadores e trabalha com prazer. É interessante como o seu irmão e os próprios mujiques encaram isto com estranheza e de como a representação “não é trabalho para senhores” (Pág. 269) predomina. Isto para mim demonstra muito bem o quão estão delimitadas essas categorias, diferenciações e oposições. Ainda aqui é feita uma descrição da ceifa e nesta Lévin anda sempre entre gerações diferentes de trabalhadores. É o novo e o velho... São as tais oposições... E demonstram o quê? Apesar das oposições e das diferenças... tudo é igual. Neste caso, apesar de novo, apesar de velho ou até nobre... todos pertencem à vida e à morte e todos partilham o trabalho.
Gostei muito da aproximação que tivemos de Dollie nesta parte. Ela vem para o campo com as crianças e é neste cenário que a sua personagem cresce e eu gostei de acompanhar esse crescimento.
Quando Lévin se encontra com Dollie eles conversam sobre Kiti. Será Lévin capaz de esquecer o orgulho e a mágoa da recusa?
Achei muito interessante quando Lévin pensa “E porque é que ela [Dollie] fala em francês com os filhos? (...) Que coisa tão pouco natural e falsa! E as crianças também sentem isso. Fazem-nas aprender francês e esquecer a sinceridade” (pág. 283).
Eu achei isto interessante porque isto faz-me pensar nas raízes. Faz-me pensar no modo como os Russos foram adquirindo certos hábitos que não eram seus (costumes, língua...) e de como isto faz com que a identidade do próprio povo se reprima por vezes. Hoje em dia há toda uma diversidade que está presente em todo o mundo mas não pensamos nisso normalmente porque é algo que está demasiado enraizado e cada vez menos temos uma identidade própria mas sim uma só identidade global.
Lévin está num caminho à procura de respostas. Ele vive e procura a sua vida. Ele procura o seu destino, a felicidade. Ele reconsidera hipóteses, reconsidera a vida familiar e pondera o trabalho colectivo e a pureza, alegria e simplicidade que sente com o trabalho. Mas, “por acaso” surge Kiti novamente e Lévin soube que “só havia no mundo uns olhos como aqueles. Existia apenas um ser capaz de concentrar para ele toda a luz e todo o sentido da vida. Era ela. Era Kiti” (pág. 288).
Aleksei, marido de Anna, surge novamente e já sabendo da traição da mulher. “Sentia-se como um homem a quem tivessem arrancado um dente que lhe doía há muito” (pág. 289).
Ele já sabia e apenas esperava a confirmação. A personagem é fria e racional e certamente a incerteza é uma das suas piores inimigas. Mas agora que a certeza tomou lugar... alívio. E então o que fazer? Trata-se de uma personagem, como já referi, fria e racional, portanto “a única coisa que agora o preocupava era a melhor maneira, a mais decente, a mais cómoda para ele e portanto a mais justa, de se livrar da lama com que ela o salpicara na sua queda, e continuar a sua vida activa, honesta e útil” (pág. 290).
Eu acrescentaria também falsa, fria e solitária. E quais as “saídas”? Ele pensou em várias... desde o duelo, o divórcio ou separação, até ao castigo da mulher e o ocultar de tudo de modo a manter a mulher e tudo como era...
Obviamente teria de ser esta a escolha para “conforto” dele e da sua imagem na sociedade.
Sim, as aparências são muito importantes nesta sociedade.
Mas isto não é importante para todos certamente... apenas importa para aqueles que fazem a sociedade de facto, certo?
Quando Lévin se encontra com o latifundiário no campo ele pensa isso mesmo: era evidente que o latifundiário dizia o seu próprio pensamento, o que é raro acontecer, e um pensamento a que fora levado não pelo desejo de ocupar com alguma coisa um cérebro ocioso, mas nascido das condições da sua vida, que ele amadurecera na sua solidão do campo e analisara de todos os lados (pág. 340).
Lévin vive para a agricultura e os seus planos agrícolas quase que surgem como uma metáfora da revolução.
Mais para o fim da terceira parte o sentido da vida para Lévin começa a ser coberto por um outro sentido... o sentido da morte. É aqui que chega o seu outro irmão ao campo, Nikolai, e é aqui que Lévin se depara com a inevitilidade da morte.

Na quarta parte temos novamente as dicotomias a falar mais alto: a união e a separação, o fim e o início.
Temos a vida e a morte.

Esta parte foi um pouco diferente das anteriores na medida em que os papéis se inverteram. Houve uma inversão de papéis: de Anna, Vronski, Aleksi... Houve também uma reviravolta no que toca à história de Lévin e Kiti.

Um dos aspectos que mais me chamou a atenção nesta parte foi a mudança da situação de Lévin e Kiti. É a felicidade.

Foi também muito interessante conhecer o outro lado de algumas personagens, tais como Anna, Vronski e Aleksi. Estes formam um triângulo que não é de todo simples. É complexo e as personagens parecem ter muito mais a mostrar...

Tolstoi nesta parte pegou num pincel e em várias cores. Pintou com diversas cores e em diversas telas.

As personagens ganham aqui mais vida e mais cor. A mais surpreendente é Aleksi Karenin, pelo menos por mim.


Na quinta parte...
A quinta parte começa com o casamento de Lévin. Aqui o que para mim se destacou foi a visão dada da altura que antecedeu o casamento, o retrato da cerimónia do casamento e a ponte que foi feita entre as expectativas que a antecediam e a realidade após.
Temos aqui um pouco daquela representação que ainda hoje é alvo de piada por parte dos homens. Falo da perspectiva de liberdade e felicidade, da perspectiva de que o casamento dita um corte de asas ao homem. Por outro lado, vemos a mulher atarefada a “construir o seu ninho”, ansiosa por isso e atenta a todos os pormenores e expressões.
Mas Lévin estava apaixonado e apesar dos comentários dos seus amigos:
Liberdade? Porquê a liberdade? A felicidade está apenas em amar e desejar,pensar nos seus desejos, nos seus pensamentos, ou seja, nenhuma liberdade – é isso a felicidade!” p. 454
Mas a visão “pós-casamento” já era um pouco diferente... Certamente a felicidade não lhe parecia “tão feliz”:
Depressa sentiu que a realização do seu desejo lhe trouxera apenas um grão de areia da montanha de felicidade que esperava”. P. 474
Lévin tinha-se casado (...) Era feliz, mas de um modo muito diferente do que esperava. A cada passo encontrava uma desilusão aos seus anteriores sonhos e um novo encanto inesperado. Era feliz mas, ao entrar na vida familiar, descobria a cada passo que ela era completamente diferente do que tinha imaginado. A cada passo sentia-se como um homem que, depois de admirar o movimento harmonioso e feliz de um pequeno barco num lago, tivesse entrado ele próprio nesse barco. Via que não bastava ficar sentado imóvel, sem se baloiçar – que era também necessário pensar, não se esquecer nem por um minuto de para onde ia, de que tinha água por baixo dos pés, de que tinha de remar e que isso fazia doer as mãos por falta de hábito, que limitar-se a olhar para aquilo era fácil, mas fazê-lo, embora muito agradável, era muito difícil. P. 488
E da vida na cidade/campo e da união pelo “sagrado” partimos para os russos Vronski e Anna que se encontravam no estrangeiro. Aqui tenho de realçar a desadaptação dos russos, a tentativa de se camuflarem, de se “ocidentalizarem” e no entanto permanecerem com a sua identidade tão própria e tão “na margem”. E aqui não se trata de uma oposição entre cidade/campo, mas sim de uma oposição interior/exterior, nacional /estrangeiro e, acima de tudo, uma união “profana” e não sagrada.
E da união partimos para a vida. E da vida para a morte.
Nikolai, irmão de Lévin, surge novamente e a morte acompanha-o.
Uma das belezas desta parte é a descrição da morte em Nikolai e naqueles que a/o rodeiam.
Dantes cada desejo causado por um sofrimento ou por uma privação, como a fome, o cansaço, a sede, eram satisfeitos por uma função do corpo que proporcionava alívio; mas agora a privação e o sofrimento não obtinham satisfação e as tentativas de satisfazê-los causavam um novo sofrimento. E por isso todos os desejos se fundiam num só – o desejo de se livrar de todos os sofrimentos e da origem deles, o corpo. P. 511
E como partimos da vida para a morte, também a morte significa vida e esta surge com a gravidez de Kiti. O vulto da morte passou numa página, mas logo na seguinte surgiu um outro rebento de vida. É o ciclo, certo?
Comecei este comentário relativo à quinta parte por falar da felicidade de Lévin. Agora vou referir-me a uma outra personagem e a outro sentimento. Karénin. Só e triste.
Esta personagem é às vezes ridícula mas por vezes também exige compaixão e até pena. É neste sentido que surge Lídia, uma beata (creio que é a melhor palavra em termos de descrição da personagem). Karénin está num duelo psicológico e sente remorsos pelo passado. Sente que não procedeu da melhor forma pois agora vê e sente as consequências dos seus actos. É aqui que surge Anna novamente no seu país e na sua cidade. Ela regressa e deseja ver o seu filho Serioja.
Além de ter mencionado a descrição da morte como uma das belezas desta parte, vou também mencionar o outro aspecto que mais gostei desta quinta parte:
Serioja. Esta criança é adorável e adorei ler os capítulos que o abordam. A ligação da inocência e sabedoria neste ser tão pequeno (mas tão grande) é adorável. Ele tem uma alma pura e repleta de amor. Achei particular interesse ao facto de ele não acreditar que a mãe (Anna) está morta. Aliás, ele não acredita na morte porque ele ama; e amando ele continua a ser acompanhado por quem ama.
Tinha nove anos, era uma criança; mas conhecia a sua própria alma, ela era-lhe cara e ele protegia-a como a pálpebra protege o olho, e não deixava que ninguém entrasse na sua alma sem a chave do amor. P. 534

Outro ponto que achei interesse nesta parte da obra foi a perspectiva de Vronski em relação à sociedade. Isto é, que apesar da sua situação actual com Anna, essa situação iria sendo aceite com o tempo devido ao progresso e tanto ele como Anna teriam as “portas da sociedade” novamente abertas.
É possível ficar sentado durante várias horas com as pernas encolhidas na mesma posição se soubermos que nada nos impede de mudar de posição; mas se um homem sabe que tem de ficar assim com as pernas encolhidas, começa a sentir cãibras, as pernas ficarão com tiques e começarão a procurar o lugar para onde ele quer estendê-las. Era isso o que Vronski sentia em relação à sociedade. P. 536
Todavia, com o desenrolar da história é visível e previsível que a abertura dessas portas terá apenas um ingresso e esse ingresso será para Vronski e não para Anna.
Como um jogo do gato e do rato, as mãos que se erguiam para ele baixavam imediatamente diante de Anna.” P. 536


A 6ª parte começa com uma casa situada no campo repleta de gente. Lévin e Kitty têm a sua casa cheia de familiares e o sossego tão típico desta casa tirou umas férias.

Por outro lado, surge uma outra casa, também situada no campo, onde reina o isolamento, a separação. Vronski e Anna estão quase sozinhos e quase que têm que inventar o que fazer para que o tempo passe.

E nestas "invenções" percebe-se muito bem como Vronski e Anna estão num mundo aparte. Estão num mundo mais evoluído, certamente. Lévin, por outro lado, personifica o conservador e tradicional.

Há aqui ainda uma distinção entre o que vive no campo trabalhando e outro usufruindo e gastando.
Acho que isto resume muito bem outro ponto... Isto é, Lévin vive para a terra e sente o valor da terra ao ponto de sentir a obrigação de se dedicar a ela. Vronski já não surge como o amante da terra. Vronski vem para uma zona rural para procurar isolamento e distância da cidade que condena Anna. Mas Vronski retira valor dessa terra. Vronski não vive para ela mas retira o valor dessa terra e assim desfruta dela. De Lévin vemos a simplicidade, a neutralidade... Pelo lado oposto surge Vronski e o luxo.
Quando Dolly decide visitar Anna surge aqui a ponte que nos leva a esses mundos tão diferentes.

Achei muito interessante a conversa de Vronski com Dolly. Esta perspectiva da filiação interessou-me sobremaneira. Isto é, Vronski surge como um pai que é pai mas não é pai. É pai biológico, é pai afectivo; no entanto, não é pai legal da criança que é sua. Isto é interessante porque nos faz pensar na importância do parentesco. Faz pensar e reflectir no modo como por vezes os filhos podem ser tidos em conta não só enquanto sujeitos, mas também como "propriedade". Isto é, a preocupação principal de Vronski com essa questão é o facto da sua filha poder suceder-lhe por direito, poder ficar com os seus bens, poder ficar com o seu nome, poder continuar a dar vida no mundo após a sua morte devido a uma identidade existente. Estas questões jurídicas/sociais/biológicas interessam-me e achei que esta situação daria para reflectir muito mais...

Outra coisa que daria para reflectir muito mais, para mim, é Anna.

Eu não tenho qualquer antipatia com Anna.
É uma personagem muito interessante. É complexa, contraditória e esta parte ajuda a perceber melhor os conflitos que se passam com a personagem.
Ela não é propriamente má nem egoísta, na minha opinião. Esta personagem personifica a mulher propriamente dita. A mulher nua, a mulher que até fica mal na fotografia e que está à visualização de todos.
Anna, para mim, é aquela personagem que, apesar de não reunir a simpatia de quase ninguém, transmite uma naturalidade fantástica.
Ela é, por assim dizer, o retrato natural do que é ser mulher e viver em sociedade. E é uma mulher intemporal. É por isso que considero esta obra um clássico.
Anna é simplesmente uma mulher.

Ela desde início era imensamente apreciada. Todos gostavam de Anna. Ela era perfeita, tinha a vida social perfeita, família perfeita, ... Não era feliz. Mas era perfeita.
A perfeição desta mulher assumiu uma forma tentadora, de modo que Vronski se deixou apaixonar. Anna é tida como uma bruxa e começa aqui a assumir esse papel maléfico. Anna lança o seu feitiço.
Mas foi algo natural, certo? Ela não o fez propositadamente. Vronski correu atrás dela e apesar de ele ter sido também por sua vez tentador, ela tentou resistir. Vronski nem isso tentou, e no entanto ela é que permanece como a figura de tentação.
(A mulher simbolicamente, quer se queira quer não, sempre foi e sempre será associada a esta figura de tentação...)

Anna acabou por não conseguir resistir ao charmoso Vronski. O seu marido não se importava minimamente com os seus sentimentos, ela era quase desprezada enquanto ser emocional. Ela era apenas um ser racional e certamente necessitava de algo mais do que razão. Vronski foi um óptimo escape. Não é uma desculpa, é apenas a realidade transmitida pelo autor.
Mas tudo se desenrolou e surgiu a traição. Anna acabou por ser marginalizada (de certa forma podemos colocar as coisas desta forma), discriminada e completamente posta de lado.
Os únicos seres que alguma vez se ligaram a Anna enquanto ser emocional (e não racional) foi o seu filho e Vronski. Anna perdeu a ligação com a razão e só lhe restam estes dois seres.
Compreendo perfeitamente o fraco sentimento para com a filha que teve de Vronski. Sim, é grosseiro, rude, egoísta. É, um pouco. Mas se pensarmos na situação e na condição da personagem... é compreensível. Trata-se de sentimento, e quanto a isso ela é clara.
O sentimento de amor, no entanto, começa a ficar deturpado devido à quebra do vínculo com a razão. Anna começa a demonstrar que o que sente por Vronski não é propriamente amor, mas sim obsessão e necessidade.
Antes de tudo, necessidade.

Ela necessita dele. Ela já não tem o seu filho, nem poderá ter. Só lhe resta Vronski.
Anna surge como a culpada. Anna surge como a figura negativa. Mas Anna também nos faz pensar... Pelo menos a mim faz.
Anna pode ser vista como aquela que está a destruir a vida a dois homens: Karenin e Vronski.
Mas eu questiono: não foram esses dois homens que destruíram a vida de Anna? Um roubou-lhe a razão e o outro está a roubar-lhe o sentimento.
Anna está lentamente a perder a sua alma. Alma essa que foi retirada pela sociedade.

Já perto do fim...
Na 7ª parte destaca-se Lévin e o modo como este está deslocado na cidade. Aqui parece-me que Tolstoi recorre imenso à ironia e há certas partes que têm um certo humor.
Quando Kiti dá à luz o desespero de Lévin tornou-se comediante.
Vida e morte. Anna está a desmoronar e o leitor sente isso ao ler estas últimas páginas... Ela está doente. Anna está fora de si, mas ao mesmo tempo extremamente ela própria: em contradição.

A 8ª parte é muito interessante. O modo como foi perspectivada a morte de Anna e o seu final trágico é aqui muito interessante. Esta é a parte que junta os nós. Era necessária esta parte para terminar a moral. Esta parte é essencial porque permite o desenlace e o perceber na totalidade o desfecho do que o autor pretendeu transmitir.
Adorei os diálogos, os monólogos e os pensamentos de Lévin nesta parte. É fabulosa a reflexão em torno da vida que Lévin faz. O viver, sabendo que se vive sem pensar nesse viver. Trata-se um pouco do racionalismo/irracionalismo. Há um excerto desta parte fantástico... excerto que acabei por não passar para aqui pois seriam precisas umas duas páginas... Mas aconselho a prestarem muita atenção a essas palavras quando/se lerem o livro. Refiro-me a uma parte onde Lévin se debate com questões filosóficas e existencialistas e se compara com as crianças. Acho que essas páginas estão geniais.


Algo que marca este livro é o facto de ser intemporal. Acho que já referi isto mas é algo que é muito importante para mim.

Este autor, apesar de pertencer a outro século, brinda-nos com reflexões e com situações passadas que continuam a ser actuais. Isso, para mim, é fabuloso.

Um dos pontos mais interessante da obra é o jogo que o autor faz com o racional, irracional e com a emoção. Não se trata de uma obra que narra o trajecto de indivíduos isolados e suas relações/sentimentos. É uma obra que vai além, é uma obra que faz uma contextualização fantástica da sociedade onde esses indivíduos se situam e é uma obra com mensagens muito fortes mas ao mesmo tempo muito subtis.

É uma obra fantástica sobre vida, morte, amor, atracção, casamento e sociedade.

É uma obra que transmite uma mensagem muito subtil mas muito clara (pelo menos para mim o assim é): o amor acaba por vencer, o amor na sua verdadeira essência fala sempre mais alto e faz com que haja felicidade de facto, apesar do trabalho ou sacrifício.
Quando se trata de amor dissimulado, quando se trata de puro desejo ou atracção... a desgraça acabará por surgir e a infelicidade tomará lugar.

A principal moral deste livro, para mim, está intimamente relacionada com o trajecto de Lévin e Kiti e paralelamente Vronski e Anna.
Por um lado um amor de facto, um amor baseado em sentimentos “verdadeiros”, espirituais, mas também com sacrifício e trabalho... e de outro lado um amor carnal, baseado na atracção, desejo e prazer.

E depois temos tudo isto enquadrado com a realidade, a sociedade e todas as convenções e dependências que temos por sermos um ser social. É uma obra que lida com o modo como somos influenciados enquanto seres. Tomamos a nossa própria vida nas nossas mãos e nós é que tomamos as rédeas ou somos sujeitos a outros constrangimentos? É a sociedade que toma as rédeas da nossa vida?
É uma obra que aborda a vida e a morte por dentro dos conceitos. E estes conceitos ganham vida e fazem-nos deslumbrar a nossa condição. A desgraça e a felicidade.