30 de setembro de 2009

O sonho de um homem ridículo



Deixo aqui um pequeno comentário relativamente a um dos meus autores preferidos. Refiro-me pois a Fiódor Dostoiévski.
Comecei por ler a sua obra “Crime e Castigo” (um dia destes tenho de reler e depois poderei debruçar-me sobre este fabuloso livro em particular neste mesmo blog), depois segui para “Os demónios” (idem)… Nestes últimos tempos andei a ler uns contos dele e simplesmente fico cada vez mais apaixonada pela obra de Dostoievski.
Irei aqui falar-vos de um pequeno conto dele intitulado “o sonho de um homem ridículo”.
Em poucas páginas o Dostoiévski mostra-nos de forma subtil a natureza humana. Para mim isto é, sem dúvida, um dos aspectos que mais me atrai nele. Enquanto estou a ler obras dele dou por mim a ler e reler as páginas de tão profundo e perspicaz, interessante, subtil mas intenso… e poderia acrescentar aqui muitos outros adjectivos, e mesmo que fossem contraditórios seriam dignos de tal uso. A contradição também é fundamental e é, sem dúvida, outro dos aspectos que me atrai.
Neste conto não é tão perceptivo um outro aspecto que me fascina neste autor. Mas certamente não poderei deixar de referir o quão assustador é estar a ler um livro e sentir as personagens. Refiro-me a sentir as personagens literalmente. Refiro-me a estar deitada na cama a ler e sentir que ao meu lado está a personagem a respirar o mesmo ar que eu. Sinto as personagens porque o Dostoiévski entra dentro da cabeça de cada um de nós transmitindo-nos por palavras a mente das personagens. É uma escrita onde as personagens são submetidas a uma cirurgia a cérebro aberto. Sem dúvida que temos um trato psicológico tão rigoroso por parte deste autor que as personagens tornam-se reais.

Em relação ao “o sonho de um homem ridículo” irei deixar aqui dois excertos. Li, reli e apaixonei-me por estas palavras. Decidi passar tudo a escrito para aqui e aqui fica. Desfrutem.

Sou um homem ridículo. Agora já quase me tomam por louco. O que significaria ter ganho em consideração, se não continuasse a ser um homem ridículo. Mas eu já não me aborreço por causa disto, agora já não guardo rancor a ninguém e gosto de toda a gente, ainda que se riam de mim… sim, senhor; agora, não sei porquê, sinto por todos os meus semelhantes uma ternura especial. Teria muito gosto em acompanhá-los no vosso riso… não, precisamente, nesse riso à minha custa, mas pelo carinho que me inspiram, se não me fizesse tanta pena ver-vos. É pena que não saibam a verdade. Oh, meu Deus!, como é doloroso ser um só a saber a verdade! Mas isto não o compreendem eles. Não, nunca o compreenderiam.
(Dostoiévski, 2008: 9)


O sonho durou milhares de anos e apenas me deixou uma impressão de conjunto… Só me lembro de que o culpado do pecado original fui eu. Como uma espantosa triquina, qual pestífero bacilo que devasta a Terra, assim devastei eu toda aquela Terra inocente e feliz. Aqueles homens aprenderam a mentir, tomaram gosto à mentira e reconheceram como eram belos. Oh!, pode ser que, a princípio, o fizessem inocentemente, por puro jogo, por diversão, que apenas se tratasse de um bacilo; mas este átomo de mentira enraizou-se nos seus corações e foi do seu agrado. Não tardou que dele derivasse a voluptuosidade, e esta voluptuosidade engendrou a inveja, e esta, a crueldade. Oh!, não sei, não me lembro já como, mas não tardou que se vertesse a primeira gota de sangue; a princípio apenas sentiram espanto; mas depois assustaram-se e começaram a afastar-se uns dos outros. Vieram as censuras e as incriminações. Conheceram a vergonha e erigiram-na em virtude. Surgiu o conceito de honra e cada bando se uniu à sombra da sua bandeira. Começaram a torturar os animais, e os animais afastaram-se deles, foram ocultar-se nos bosques e tornaram-se seus inimigos. Iniciou-se a luta pela separação, pela particularização, pela personalidade, pelo «teu» e pelo «meu». Começaram a falar várias línguas. Conheceram a dor e tomaram-lhe gosto; ansiavam pelo sofrimento e diziam que a verdade só se comprava pelo preço do martírio. Depois surgiu a ciência. Como se haviam tornado maus, deram em falar de fraternidade e de humanidade, e compreendiam estas ideias. Como se tornaram criminosos, inventaram a justiça e redigiram códigos para a encerrarem neles, e, para assegurar o cumprimento desses códigos, ergueram a guilhotina. Mal se recordavam daquilo que perderam e não queriam acreditar que alguma vez tivessem sido inocentes e felizes. Riam-se até da possibilidade dessa sua felicidade passada e taxavam-na de sonho fantástico. Nem sequer podiam fazer uma ideia desse estado, e acontecia, além disso, uma coisa estranha: agora que tinham perdido já toda a fé na felicidade pretérita e a classificavam de fantasia, empenhavam-se a tal ponto em voltar a ser inocentes e felizes, que se ajoelhavam como crianças ante os desejos dos seus corações; adoravam esses desejos, erguiam-lhes templos e oravam à sua própria ideia, ao seu próprio querer, ao mesmo tempo que continuavam a acreditar, com uma convicção inabalável, na possibilidade de cumprir e realizar essa ideia, apesar de implorarem por ela de joelhos. E, no entanto… se pudesse ter-se dado o caso de voltarem outra vez àquele inocente e venturoso estado que perderam; se alguém os tivesse consultado, perguntando-lhes: «Quereis voltar a ele?», ter-lhe-iam respondido resolutamente que não. A mim, diziam-me: «Bom, seremos mentirosos, maus e injustos; sabemo-lo e lamentamo-lo, e essa é a nossa tortura, e talvez por isso nos atormentemos e castiguemos mais do que faria esse Juiz misericordioso que há-de julgar-nos no futuro, mas cujo nome nos é desconhecido. Mas, em compensação, possuímos a ciência, e graças a ela havemos de tornar a encontrar a verdade, e então aceitá-la-emos já com consciência. O saber está acima do sentimento; o conhecimento da vida… acima da própria vida. A ciência há-de tornar-nos omniscientes; a omnisciência conhece todas as leis, e o conhecimento da lei da felicidade… está acima da própria felicidade.» Era assim que eles me falavam e, a avaliar por tais palavras, cada um deles se tornara mais apreciador de si próprio que dos outros e se valorizava a si próprio mais que tudo no mundo; sim… e não poderia ter sido de outro modo. Tornaram-se todos tão ciosos do seu eu que cada um se afanava por rebaixar, oprimir e diminuir o eu do próximo, por todos os meios possíveis, e só nisto se resumia a sua vida. Desenvolveu-se a escravatura e surgiram até escravos voluntários; os fracos submeteram-se com gosto aos mais fortes, mas com a condição de que estes os ajudassem a subjugar os mais fracos que eles. Surgiram entre eles profetas que lhes falavam do seu orgulho a chorar, da perda da medida e da harmonia do sentimento do pudor. Mas eles riam-se e troçavam desses profetas e acabavam por lapidá-los. Sangue sagrado correu nos umbrais do templo. Mas também havia homens que começaram a discutir a maneira de voltar a uni-los a todos, de tornar a viver em comum, formando uma só amistosa e concorde sociedade, em que não prejudicassem os outros, sem que, entretanto, deixassem de querer a si próprios mais que a ninguém. Essa ideia foi, entre eles, causa de grandes guerras. Todos os beligerantes acreditavam ao mesmo tempo que a ciência, a omnisciência e o instinto da própria conservação obrigariam finalmente os homens a unir-se numa sociedade razoável e cordata, para o que, entretanto, se esforçavam os omniscientes, a fim de acelerar as coisas, por exterminar todos os não omniscientes e quantos não compreendiam a sua ideia, a fim de que não fossem um obstáculo para o seu triunfo. Mas não tardou que diminuísse o sentimento geral da própria conservação e surgissem voluptuosos e soberbos que proclamavam abertamente que desejavam tudo ou nada. Registaram-se proezas de todo o género e, quando não conseguiam nada com elas… restava o recurso do suicídio. Houve religiões consagradas ao culto do não-ser e do próprio aniquilamento, em honra do eterno repouso em o nada. Até que, por fim, aqueles homens se cansaram dos seus absurdos esforços e nos seus rostos se reflectiu a dor, e proclamaram: a dor é beleza, pois só a dor tem sentido. E cantaram a dor nos seus poemas. Eu andava numa agitação entre eles, torcia as mãos e chorava; mas amava-os, no entanto, e talvez mais que antes, quando no seu rosto não assomava ainda nenhuma dor e eram belos e inocentes. A Terra por eles manchada parecia-me então mais valiosa do que antes, quando era um paraíso, e isso apenas porque nela aparecera a dor.

(Dostoiévski, 2008: 44 - 49)


Dostoiévski, Fiódor (2008), O sonho dum homem ridículo, Quasi: Vila Nova de Famalicão

1 comentário:

  1. Continuas a tentar deixar-me curioso para ler o Dostoiévski, mas não poder ser, tenho montes de coisas para ler ainda, cease and desist :p

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